sexta-feira, 29 de abril de 2011

Erundina: “desprivatizar as metrópoles brasileiras

Abriu-se nesta quinta-feira, em São Paulo, uma nova etapa de uma das lutas sociais que marcou o primeiro semestre. Depois de promover, ao longo de muitas semanas, manifestações seguidas contra o aumento da tarifa de ônibus (de R$ 2,70 para R$ 3), o Movimento Passe Livre decidiu aprofundar o debate sobre o tipo de cidade que quer ajudar a construir – e lançou, na USP, a campanha pela Tarifa Zero nos transportes públicos.
Apresentada em mais detalhes num novo espaço na internet, a campanha nasceu para confrontar duas das piores características das metrópoles brasileiras. Insurge-se contra a segregação que separa o Centro da Periferia, numa atualização do apartheid que dividia a colônia em Casa Grande e Senzala. E denuncia a mercantilização dos serviços públicos – que também fratura as cidades, ao estabelecer barreiras que só podem ser vencidas pelos que têm dinheiro.
Na batalha contra o aumento das tarifas, buscava-se a resposta imediata. Bem-sucedida (embora sem vitória econômica), ela deve continuar agora na forma de um debate mais intenso sobre o tipo de ambiente urbano que o Brasil quer construir. Aceitamos o papel de figurantes passivos, num modelo em que os protagonistas são o automóvel e a via expressa? Ou estamos dispostos a desbravar as possibilidades de novas metrópoles – menos desiguais, mais humanas e, por isso mesmo, dispostas a conviver com a natureza?
O movimento Passe Livre – Tarifa Zero sabe que não é possível optar apenas com palavras-de-ordem. Além de promover mobilizações, ele tem se preocupado em estimular debates formadores e – igualmente importante – em vislumbrar alternativas e resgatar as que já foram propostas.
A entrevista a seguir é um sinal desta ambição. Nela, um grupo de articuladores do Tarifa Zero entrevista a ex-prefeita (hoje deputada) Luiza Erundina. Busca-se reconstituir a memória de uma experiência fascinante: a eliminação das tarifas de ônibus, proposta (à época, sem sucesso) pela então prefeita, em 1991.
O diálogo não é monotemático. Erundina e seus entrevistadores colocam em pauta as políticas que seriam necessárias para vivermos em cidades para todos – capazes, portanto, de superar ao menos parte das discriminações e preconceitos em que estamos mergulhados. Especulam sobre estratégias para superar obstáculos impostos pelos grupos de poder e tornar tais políticas efetivas.
Resulta um texto que estimula a refletir sobre as cidades (e a sociedade) que estamos construindo. Num momento em que as maiores metrópoles brasileiras preparam-se para dois megaeventos globais (Copa do Mundo-2014 e Olimpíadas-2016), vale a pena examinar as ideias desta ex-prefeita nordestina e lutadora, que destaca, sobre as transformações sociais indispensáveis: “Se não foi vinte anos atrás, será um dia. A história dá saltos. O importante é você apostar em idéias que são inovadoras e acumular forças” (A.M).
P: Como evoluiu a conjuntura de governo até chegar a idéia da tarifa zero? Como esta proposta nasceu dentro do governo essa idéia da tarifa zero?
Luiza Erundina:
A questão do transporte e do trânsito na cidade de São Paulo foi sempre um problema muito difícil, complexo, desafiador. Não foi diferente na nossa época, até porque nós tínhamos a CMTC (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos), que deveria responder por 30% do transporte de ônibus da cidade e estava completamente sucateada. A frota envelhecida, deteriorada, estoques zerados. Basta dizer que havia um único pneu no estoque, no depósito, e esse pneu estava careca. Praticamente 30% do conjunto do sistema não funcionava.
Qual era o tamanho da frota da CMTC?
Luiza Erundina:
Deveriam operar três mil ônibus. Mas estava muito reduzida, com muitos problemas. Além disso, havia uma má vontade dos fornecedores de peças, acessórios todo o necessário para manter a frota. A frota privada também estava envelhecida, deteriorada. Tínhamos um serviço de baixíssima qualidade e muito caro.
Começamos a tentar alternativas. Por exemplo, a municipalização, que mudou os termos de contrato da prestação do serviço de transporte. Governamos quatro anos com minoria na Câmara. E qualquer modificação dos contratos com as empresas exigia a aprovação de um projeto de lei. Só no terceiro ano de governo, conseguimos aprovar a lei de municipalização, que permitia que se remunerasse o serviço não por viagens realizadas, mas também por quilômetros rodados.
Outra lógica passou a reger essa relação contratual. Houve, inclusive, redução do número de passageiros por metro quadrado dentro dos ônibus. Significou melhor qualidade e redução de custos para o usuário. Evidentemente, a Prefeitura teve que arcar com um subsídio maior das tarifas. Era o único meio de melhorar a qualidade do serviço.
Os ônibus representavam muito mais que hoje, em São Paulo. Mais de seis milhões de usuários que dependiam do serviço. O metrô era muito mais limitado. Entre outras medidas que o setor de transporte bolou – particularmente Lúcio Gregori [secretário de Transporte] e sua equipe, havia a criação de um Fundo de Transporte, para o qual contribuiriam, além da Prefeitura, os empresários.
Quem mantinha negócios na cidade – bancos, supermercados, shoppings – deveria também participar dos custos do serviço, já que é um insumo dos negócios. O empresário depende do trabalhador ir e voltar para o trabalho. Era justo que os custos do serviço fossem, no mínimo, repartidos em três partes.
Esse fundo exigia outra lei, que a Câmara recusou-se a aprovar. Houve uma campanha contra essa proposta. O próprio Partido dos Trabalhadores, ao qual eu estava filiada como prefeita, também não entendeu a proposta, resistiu a ela.
Como foi o diálogo entre governo e o PT?
Luiza Erundina:
Os setores conservadores difundiam uma visão equivocada, segundo a qual haveria necessariamente abusos, em um serviço gratuito. Segundo este preconceito, o sistema viraria um caos. Toda idéia inovadora, criativa, revolucionária em certo sentido, gera resistência. Tive dificuldade com a Câmara com relação ao transporte porque a oposição sabia que, à medida que a gente conseguisse melhorar o serviço, e fazer planejamento do tráfego e do trânsito, isso geraria dividendos políticos e eleitorais
Também pesou o fato de não mantermos aquela prática fisiológica, promíscua que normalmente existe na relação do Executivo com o Legislativo, sobretudo a história da Câmara Municipal e Prefeitura de São Paulo. Nunca foi uma história muito bonita do ponto de vista da independência e rigor ético na relação entre os dois poderes. Tudo que se tentava criar de novo no setor de transporte era visto com má vontade, má fé, má intenção. Isso evidentemente inviabilizou a proposta. A Câmara rejeitou o projeto. E hoje sabemos que a ideia está sendo incorporada, cogitada, reapropriada por muitos governos. Não é algo inusitado: em outros países, a divisão dos custos do transporte já se faz há muito tempo.
Os movimentos sociais reivindicavam a tarifa zero?
Luiza Erundina:
O problema é que, quando se conseguiu construir essa proposta, faltavam poucos meses para fechar o orçamento da cidade. O Executivo é quem manda o projeto de lei orçamentária. Se não me engano, restavam três ou quatro meses para apresentar o projeto na Câmara. Não houve tempo suficiente para esclarecer certos setores que, não por má vontade, mas por desconhecimento, por não terem domínio da proposta no seu todo, ficavam desconfiados, inseguros, em dúvida.
Mas a população aprovou.
Luiza Erundina: A população aprovou. Só que não conseguimos acumular força política, pressão externa ao Legislativo… e a mídia também. Enfrentamos o cerco da Câmara e o da mídia. Talvez a gente não tenha sido muito competente na relação com a mídia. Até porque nós tínhamos muito rigor, muita preocupação em não extrapolar os investimentos em comunicação, em publicidade, em propaganda. Porque as carências na cidade eram tão grandes…



A entrevista completa no (click) "Outras Palavras"

Nenhum comentário:

Postar um comentário