quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Legislativo independente, como?

Mais de 30% dos eleitores de São Paulo não se lembravam em que deputado federal votaram, 10 dias após as últimas eleições de 3 de outubro. Daqui a um ano esse percentual eleva-se a 80%.
Já o palhaço Tiririca teve 1,3 milhão de votos dizendo que não sabia o que faz um deputado federal. “Vote em mim que eu lhe conto” declarava. Enquanto isso, um dos mais importantes deputados federais da história recente, como José Genoíno, perde a eleição em São Paulo. Estamos, portanto, diante de sintomas institucionais extremamente preocupantes.
Teoricamente, o regime republicano brasileiro baseia-se na existência de três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. O Legislativo e o Executivo legitimados pelo voto popular.
O presidencialismo brasileiro assegura, por sua vez, aos poderes executivos –governos federal, estaduais e municipais – uma indiscutível legitimidade popular originada das urnas. Já em relação ao Legislativo, as eleições conjuntas de presidente e governadores, com deputados federais e estaduais. Prefeitos com vereadores podem estar comprometendo, na gênese, a legitimidade e a independência desses poderes.
As eleições proporcionais (câmaras de vereadores e de deputados) ocorrendo simultaneamente com as eleições majoritárias para os poderes executivos acabam por colocar os candidatos a presidente, governador ou prefeito como os atores principalíssimos das campanhas eleitorais. Os partidos vão para um distante segundo plano e, com eles, os candidatos proporcionais. Exceção para os candidatos ao Senado, que são majoritários.
A verdade é que o principal esforço de inteligência política e eleitoral concentra-se nas eleições majoritárias. Somente nelas são apresentados nas TVs, nas rádios, nos debates, no noticiário da imprensa, as propostas, os projetos, as ideias e o perfil de cada candidatura. Com toda desigualdade de recursos e de tempo da TV, é possível dar ao eleitor a oportunidade do exercício mais consciente do voto e de uma escolha livre. A chance de verificar a coerência entre as promessas e o histórico político e administrativo do candidato. Ainda que dando o desconto às superproduções publicitárias das campanhas, o eleitor pode examinar o conteúdo das proposições e avaliar a real viabilidade de cada ideia.
E no último pleito tivemos uma linda demonstração da eficiência democrática do nosso sistema eleitoral, para cargos executivos, assegurando a uma candidatura com pouquíssimo tempo de TV, partido pequeno e recursos visivelmente inferiores aos dos seus concorrentes chegar a quase 20% dos votos e provocar uma alteração significativa no quadro da sucessão presidencial. A votação de Marina ainda tem muito a produzir em termos de ciência política.
Já nas eleições proporcionais observa-se quase que o contrário. Os votos mais livres de máquinas, de corporações, e do poder do dinheiro, bandearam-se, muitas vezes, para fenômenos como Tiririca.
Realizadas conjuntamente, as eleições para executivo e as proporcionais fica para esta última um tempo de TV e rádio dividido entre centenas ou milhares de candidatos. Sucedem-se, então, rostos conhecidos e desconhecidos recitando seus nomes, números e um ou outro slogan. Nada que possa ser retido na memória e analisado pelo eleitor, viabilizando uma decisão minimamente racional. Em raríssimos casos em que não havendo coligações proporcionais, ensaia-se um programa partidário onde são melhor apresentados os candidatos proporcionais prioritários daquele partido.
E fora da TV e do rádio, nas ruas, o fenômeno se repete sob outra forma: os candidatos proporcionais disputam ferozmente os muros, gastam fortunas em pichamentos, cartazes e carros de som com jingles horríveis repetindo o seu número. Propostas? Nenhuma. Ideias, formulações? Zero.
Os raros comícios, carreatas e atos públicos, quando ocorrem, destinam-se à chamada chapa majoritária: governador, senadores e presidente. Pano rápido. No máximo os candidatos a deputado são citados nominalmente. Nunca, ou quase nunca, falam.
Aliás, publicitários, organizadores de comícios e atos públicos consideram candidatos a deputado “uns sacos”. E considerando a estrutura das campanhas eles têm razão.
Longe do noticiário, dos debates e da propaganda eleitoral, resta aos candidatos a cargos proporcionais aprofundarem-se nas zonas cinzentas dos acordos eleitorais envolvendo recursos financeiros, acordos em que quase sempre dependem de uso das máquinas municipais, federais, estaduais e sindicais.
E o pior de tudo: os deputados têm suas campanhas desenhadas por fatores, em larga medida, definidos pelas estruturas do poder Executivo. Nos municípios, regiões ou bairros prometem e conseguem votos com as obras que já foram executadas (pelo poder Executivo, óbvio) ou pelas obras que serão realizadas. Também pelo Executivo.
E mesmo as relações das corporações profissionais, religiosas, empresariais com a política ocorrem, quase sempre, com a interveniência ou decisões do Executivo. Nesse caso há exceções situadas no campo da oposição aos governos.
Reduzindo-se o espaço do debate, ou do embate de projetos, ideias e perfis pessoais historicamente situados, amplia-se, automaticamente, o espaço do uso de recursos para remuneração de cabos eleitorais, de “militantes” temporários, também remunerados, de ocupação maciça das cidades com propaganda, apenas para passar a ideia de força material das candidaturas. E essa “força” se materializa na contratação de pessoas permitida pela legislação eleitoral, o que obviamente encobre a compra de votos.
Claro que existem exceções. Algumas delas brilhantes. A maioria refere-se a candidaturas oriundas dos meios de comunicação e entretenimento.
Mas todos sabem que a regra geral é a que está exposta acima.
Cabe, assim, a indagação que motivou este artigo: pode-se pensar em legislativos independentes se as suas funções são tão dependentes do Executivo?
Obviamente que a separação das eleições do Executivo e do Legislativo não se constitui numa solução completa. Mas seria um primeiro passo, seguido de outros, como o financiamento público, o voto partidário, talvez o voto distrital. Até porque seria impossível dar aos milhares de candidatos proporcionais o mesmo tempo de TV que é destinado hoje aos majoritários.
Tudo isso dependerá de senadores e deputados que se elegeram nesse sistema, mas que têm, com certeza, compromissos profundos com a democracia, a ética e o futuro do Brasil.

Domingos Leonelli

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